Ambiente corporativo está virando mundo do faz-de-conta

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Ao longo das últimas décadas, um processo de terceirização das responsabilidades vem se alastrando. Para que o movimento prospere, é imprescindível incutir paralelamente à iniciativa o conceito de vitimização. A estratégia é tão simples quanto eficiente, pois entrega numa bandeja exatamente o que todo ser humano medíocre almeja: comodismo. Afinal, que posição seria mais cômoda do que ser tratado como vítima e ter o direito de exigir que os outros compensem e recompensem todos os seus infortúnios?

É claro que uma fórmula palatável e de fácil digestão se espalharia rapidamente em todas as camadas da sociedade, incluindo o ambiente corporativo. De uns tempos para cá, não basta fornecer um local de trabalho saudável e amigável e cumprir as inúmeras obrigações legais que cabe aos empregadores. Agora é preciso oferecer algo a mais: garantir a “felicidade” de seus colaboradores.

No livro Qual é a tua obra? – Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética, o filósofo e doutor em educação Mario Sergio Cortella fala da necessidade de mudar a ótica do trabalho e buscar sentido para o que cada um faz. “A ideia de trabalho como castigo precisa ser substituída pelo conceito de realizar uma obra. Mas a gente tem de substituir isso pela ideia de obra, que os gregos chamavam de ‘poiesis’, que significa minha obra, aquilo que faço, que construo, em que me vejo.”

Cortella também chama a atenção para a necessidade de pertencimento que todo ser humano busca e o perigo da alienação em relação ao próprio trabalho: “Todas as vezes que eu olho o que fiz como não sendo eu ou não me pertencendo, eu me alieno. Fico alheio”. Ou seja, o que cabe às empresas é criar uma cultura de pertencimento e o que cabe ao trabalhador é encarar sua função como sua obra, seu resultado. Isso, por si só, já dá sentido àquilo que fazemos.

No artigo intitulado Como os gestores podem fazer seus funcionários mais felizes, de Jack Kelly, publicado na revista Forbes, lemos que “entre outras atitudes, os líderes devem reconhecer seus funcionários publicamente e por meio dos salários para manter suas equipes engajadas e motivadas” e que, principalmente no pós-pandemia, “os profissionais querem uma vida melhor” e, para proporcionar isso, os líderes das empresas “precisam oferecer uma variedade de opções de trabalho: remota, híbrida ou em tempo integral no escritório”. Há fatores, porém, que confrontam a fórmula “dinheiro + trabalhe onde quiser x elogios = felicidade”. Se ela fosse a solução para a infelicidade, como explicar a sensação de bem-estar que o voluntariado proporciona? É bíblico que “todo trabalhador é digno de seu salário” (1 Timóteo 5.18) e que não se trata de um presente, mas, sim, de um direito adquirido pelo trabalho realizado (Romanos 4.4). Altos salários, no entanto, não são sinônimo de felicidade.

Anna Lembke, professora de psiquiatria e medicina da adicção na Escola de Medicina da Universidade Stanford, reflete em seu livro Nação Dopamina: “Talvez o motivo de estarmos todos tão infelizes seja porque estamos dando duro para evitar ser infelizes”. Para ela, ao tentar fugir do sofrimento, as pessoas recorrem cada vez mais a comportamentos que estimulam a liberação de dopamina, o hormônio do prazer. Como em toda adicção é preciso uma dose maior para alcançar um resultado cada vez menos duradouro, a fórmula da infelicidade constante pode estar justamente na busca da felicidade constante.

Quando essa realidade se une à ideia de que o trabalho é fonte de infelicidade e que o trabalhador é vítima daquele que o emprega, forma-se uma espiral que pode funcionar como mais uma fagulha para atiçar ainda mais a guerra de classes que torna todos infelizes. Portanto, é hora de analisar com mais cuidado as novas regras e normas que estão sendo colocadas sobre os ombros dos líderes das empresas e ter o bom senso de distinguir o que é necessário do que não passa de fantasia.

Por Patricia Lages, jornalista

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Colaborador

Patricia Lages, jornalista / Foto: nd3000/getty images