O que há por trás do pensamento “gosto mais de bicho do que de gente”
Talvez a frase aparentemente inocente “gosto mais de bicho do que de gente” tenha surgido da decepção de muitos com a degradação do comportamento humano. Há, porém, que se considerar os desdobramentos desse conceito. Em 2013, um acontecimento em um parque público da região de Villa Groggia, em Veneza, foi parar nas manchetes de diversos jornais italianos: uma senhora solicitou às autoridades que as crianças fossem proibidas de brincar no local sob a alegação de que perturbavam seu cachorro. O pedido foi acatado e crianças de 2 a 8 anos foram, de fato, proibidas de brincar ali. Outro exemplo do que acontece quando a sociedade perde a mão é uma frase que se tornou comum entre os amantes dos felinos e chegou a virar estampa de camiseta: “Nos livramos das crianças, o gato era alérgico”.
Imagine o que aconteceria a uma lanchonete que criasse um hambúrguer simulando o gosto e a textura da carne canina. Certamente amargaria um tremendo boicote. Por outro lado, em 2014, o restaurante Terminus Tavern, em Londres, lançou um sanduíche “sabor carne humana”, batizado de “hambúrguer canibal”.
Para dar um ar de realismo à coisa, os criadores afirmaram terem lido a declaração de um homem que praticava o canibalismo descrevendo o sabor: uma mistura de carne suína, costela, vitela e fígado de frango. Alguma comoção? Não, nenhuma. Ao contrário, o sanduíche foi utilizado para promover a quinta temporada da série The Walking Dead.
No artigo intitulado O Projeto Tamar (2005), o jurista Ives Gandra Martins afirma que, para alguns parlamentares brasileiros, as tartarugas são mais importantes do que os seres humanos. “O denominado Projeto Tamar protege a vida das tartarugas desde 1980, com equipe especializada monitorando todas as noites, de setembro a março, 1.100 praias no litoral, e de janeiro a junho, as ilhas oceânicas. Protege-se, desta forma, 14 mil ninhos, algo em torno de 650 mil filhotes. Quem destruir um único ovo de tartaruga comete crime contra a fauna e poderá ir para a cadeia (Lei 9.605/93)”, diz o artigo.
Não é preciso dizer que o cidadão comum não tem a mesma proteção, porém o objetivo do jurista é traçar um contraponto com um projeto da deputada Jandira Feghali (PCdoB), apresentado à época, em que um bebê pode ser abortado sob qualquer circunstância e motivo até o último minuto antes do parto. Se um ovo de tartaruga não pode ser destruído, por que um feto humano é tratado de forma diferente? Para citar mais um exemplo, veja o artigo 49 da Lei 9605/98: “Destruir, danificar, lesar ou mal tratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia: pena de detenção de três meses a um ano, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”. Segundo análise publicada no site Jusbrasil, essa lei considera crime ambiental o ato de destruir ou danificar mesmo quando não há intenção.
A desproporcionalidade quando se trata de direitos humanos, animais e ambientais é latente, mas não é de hoje. No Antigo Egito, onde diversos animais eram adorados, as práticas religiosas envolvendo sacrifícios em seus rituais poupavam os animais, mas ofereciam seres humanos, preferencialmente crianças, por sua pureza, mas também adultos, desde que tivessem um físico perfeito. Sobre isso, o escritor inglês G.K. Chesterton, cunhou uma frase tão emblemática quanto real: “onde quer que haja adoração a animais, ali haverá sacrifício humano.”
Recentemente, o salvamento do cavalo de Canoas (RS) foi muito mais cobrado e comemorado do que os salvamentos das pessoas atingidas pela tragédia gaúcha. Também não é preciso dizer que as diversas pessoas que aguardavam resgate sobre os telhados não causaram a mesma comoção.
É evidente que todos devemos cuidar do meio ambiente e dos animais e que as leis que os protegem acabam protegendo o mundo como um todo. Esse endeusamento desmedido, porém, tem promovido a desvalorização da vida humana, o que, por fim, coloca em risco o mundo como um todo.
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