A falência da família Civita
O Grupo Abril, que já figurou entre os maiores na América Latina, corre o risco de fechar as portas por má administração e qualidade editorial duvidosa dos herdeiros de Victor Civita. Na última década, foram encerradas mais de 20 revistas da editora
O imponente Edifício Birmann, no número 21 da Marginal Pinheiros (foto abaixo), em São Paulo, foi por mais de 15 anos o símbolo do poderio do Grupo Abril. A retirada do busto do criador do império, o ítalo-americano Victor Civita (foto ao lado), do lobby de entrada do prédio, em janeiro de 2015, evidenciou a derrocada dos negócios da família. A Editora Abril, que chegou a ser a maior editora de revistas da América Latina, segue sua caminhada rumo à falência. Uma falência que é financeira, biográfica e de credibilidade. Em pouco tempo, a editora não ocupará mais o prédio na Marginal. Resta apenas saber quanto tempo ainda conseguirá se manter em pé.
Desde a morte do fundador, Victor Civita, em 1990, a Abril passa por uma sucessão de problemas de gestão, negócios fracassados e equívocos editoriais que abalaram a receita da empresa. Victor foi sucedido na direção pelo filho Roberto, que acumulou erros suficientes para comprometer o futuro da empresa. Roberto não soube apostar nas novas plataformas digitais com o surgimento da internet e ainda fez investimentos ruins na área de televisão.
A aventura na TV por assinatura, com a TVA, fracassou. A Abril repassou o negócio para a Telefônica e também se desfez da MTV, vendida para o Grupo Spring. Em outra tentativa de salvar a empresa, já havia se envolvido em um negócio ainda mais controverso. Em 2006, vendeu 30% da empresa para o Naspers, maior grupo de comunicação sul-africano e que já foi acusado de ser o braço de comunicação do apartheid – regime de segregação racial que vigorou na África do Sul de 1948 a 1994.
Nos últimos 10 anos, foram encerradas mais de duas dezenas de publicações. A Editora Abril deixou de editar a Playboy, a Contigo! e a Placar, entre outros títulos que fizeram história no jornalismo brasileiro. Este processo deixou centenas de funcionários desempregados e outros tantos em condição de insegurança profissional. Sem falar na degradação na qualidade de uma das principais publicações: a Veja. Impregnada pelas escolhas editoriais e pela política empresarial dos Civitas, a revista, que um dia foi das mais respeitadas do País, caiu em profundo descrédito, levando consigo a fama de servir ao jogo político e ser especialista em fazer mau jornalismo para destruir reputações.
Os esforços para salvar a Abril parecem não alcançar o resultado esperado pelos acionistas da empresa. Os netos de Victor Civita demonstram ir por um caminho pior que o do pai, Roberto, morto em 2013. No início deste mês, a empresa anunciou que vai fazer mais cortes de pessoal e propôs dividir o pagamento das verbas rescisórias aos demitidos em 10 parcelas, o que é ilegal segundo o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
A falência financeira
O desastre administrativo dos herdeiros do Grupo Abril levou a uma situação de colapso financeiro, alimentado por dívidas e negócios malfeitos que resultaram em prejuízos milionários e centenas de demissões nos últimos anos. Segundo o Volt Data Lab, projeto independente de jornalismo de dados, a Editora Abril foi a empresa jornalística que mais dispensou funcionários desde 2012. Foram pelo menos 440 demissões, sendo 163 apenas de jornalistas.
Para tentar estancar a sangria, que vinha desde a morte do fundador, e depois de tentar diversas manobras, em fevereiro de 2015, a Abrilpar, holding da família Civita que controla os negócios do Grupo Abril, vendeu as empresas do grupo ligadas à área de educação para fundos de investimento. Um negócio de R$ 1,31 bilhão.
Mesmo assim, a crise continuou. Para piorar, o constrangimento da editora deixou de ser reservado aos seus balanços econômicos e acabou se tornando público.
Em meio aos prejuízos sucessivos, foi preciso economizar no aluguel. A Abril se desfez de quase metade do prédio da Marginal Pinheiros. E já anunciou a mudança para outro endereço mais barato.
E, como tudo pode piorar, a Editora Abril perdeu 15% de sua receita publicitária em 2016. Mas o discurso “otimista” se mantém de pé. O grupo anunciou no final do ano passado que concluiu um novo acordo para renegociação de sua dívida bancária de curto e médio prazos.
O mais recente demonstrativo financeiro do Grupo Abril é uma síntese da ruína nos negócios dos Civitas. Foram registrados prejuízos repetidos nas operações da empresa de R$ 208 milhões em 2015 e de R$ 110 milhões em 2016. Some-se ao prejuízo, um patrimônio líquido negativo de R$ 368 milhões. Isto significa que a empresa tem mais dívidas do que ativos para quitá-las.
A situação judicial reforça o panorama de falência. Em 2016, a previsão de perdas por processos na Justiça aumentou quase 50%, passando de R$ 30 milhõs para R$ 44,5 milhões, dos quais R$ 28,8 milhõs são por processos trabalhistas.
A situação do grupo foi ressaltada no relatório sobre as demonstrações financeiras de 2016 elaborado pela PricewaterhouseCoopers Auditores Independentes. Embora os acionistas tenham garantido aos auditores que conseguirão o dinheiro para manter as operações do grupo e cobrir o rombo da empresa com dinheiro do próprio bolso, a promessa foi recebida com desconfiança: “Essa situação, dentre outras indicam a existência de incerteza relevante que pode levantar dúvida significativa sobre sua continuidade operacional”.
A falência biográfica
1950 – Nasce a Abril
Victor Civita, oriundo de uma família de judeus com raízes italianas, funda a Editora Abril. A empresa ganha os direitos da Walt Disney para publicação da revista em quadrinhos do Pato Donald. O lançamento se torna em pouco tempo um sucesso e passa a ser a publicação infantil mais vendida do Brasil
1968 – Criação de Veja
Após viagens a semanários nos Estados Unidos, Roberto Civita, filho de Victor, e o jornalista Mino Carta criam a revista semanal que seria a mais vendida do País
1989 – Símbolo de manipulação
A edição de 26 de abril daquele ano se tornaria um ícone do perfil da Veja. O cantor Cazuza, já nos momentos finais de sua luta pela vida, era vítima da revista: “Uma vítima da AIDS agoniza em praça pública”. Para ilustrar a capa, uma foto do cantor em estado quase esquelético. A reportagem foi acusada por Cazuza e familiares de manipulação
1990 – O filho assume
Morre Victor Civita aos 83 anos. Em seu lugar, entra o filho Roberto. A empresa tinha cerca de 7 mil funcionários, o maior grupo da América do Sul. Civita passa a acumular os cargos de presidente do Conselho de Administração e diretor editorial do Grupo Abril e presidente do conselho da Abril Educação
2006 – Negócio nebuloso
A editora contrai dívidas milionárias e decide vender a emissora TVA para a empresa espanhola Telefônica. Para tentar melhorar a situação do grupo, a Abril vende 30% de sua participação para a empresa sul-africana Naspers, em transação questionada
2012 – Início da ruína
As receitas líquidas do Grupo Abril despencam 65%. O lucro foi de R$ 64,2 milhões em 2012, ante os R$ 185,9 milhões registrados no ano anterior. O presidente do Grupo Abril, Fábio Barbosa, afirma que os resultados foram “relativamente positivos”. No ano seguinte, morreria Roberto Civita
2015 – Gestão desastrosa
Tentando reduzir seus prejuízos, a Editora Abril passa a vender grande parte de suas revistas. Já sob a administração de Giancarlo Civita, a editora deixou de circular cerca de duas dezenas de revistas, entre as principais: Playboy, AnaMaria, Arquitetura & Constução, Contigo!, Placar, Tititi, Você RH e Você S/A. No mesmo ano, metade do prédio da empresa na Marginal Pinheiros é desocupada
2016 – Colapso financeiro
A empresa anuncia queda de 15% de sua renda publicitária. Giancarlo Civita afirmou, após ter renegociado parte da dívida da empresa, que a transação é a “prova de que a Abril é uma empresa forte e promissora”. Em setembro de 2017, já aos frangalhos, a empresa começa a procurar um local menor para alocar sua estrutura, antes situada nos 24 andares do suntuoso Edifício Birmann
A falência de credibilidade
A revista Veja, principal veiculo da Editora Abril, deu mais um exemplo do tipo de jornalismo que arruinou a reputação do grupo. Neste fim de semana, sob o titulo de “O escolhido”, a Veja descarregou, novamente, seu arsenal de preconceitos, desinformação e um leque de maldades sobre a verdadeira história da Igreja Universal do Reino de Deus e suas atividades espirituais, desde sua fundação pelo Bispo Edir Macedo, pautadas à luz da Bíblia Sagrada. Não foi a primeira vez que o jornalismo ficou em segundo plano na publicação.
A edição de número 1077 da Veja, de 26 de abril de 1989 (foto ao lado), é estudada até hoje nas faculdades de jornalismo como exemplo negativo de conduta e ética jornalística. Naquele fim de semana, o cantor Cazuza, já nos momentos finais de sua luta contra a AIDS, era o personagem da capa. “Cazuza: uma vítima da AIDS agoniza em praça pública” era a manchete, acompanhada de foto ressaltando a magreza do artista. Nas páginas internas a Veja apresentou matéria de oito páginas – reportagem acusada pelo cantor e familiares de manipulação de conteúdo. No texto, até o talento de Cazuza era questionado.
“Tive vontade de vomitar quando vi aquela capa da Veja”, disse Cazuza em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, no mesmo dia em que a revista chegou às bancas. “Acabei tendo um problema cardíaco e por isso passei o dia numa cadeira de rodas.” Mesmo anos depois, a mãe do cantor, Lucinha Araújo, não se esqueceu do trauma que foi ver o filho estampado daquela forma em uma revista tradicional. “A Veja matou meu filho”, disse.
Não foi a primeira nem a última vez que a Veja fez algo parecido. Sete anos antes, a cantora Elis Regina havia sido a vítima. Ela foi capa da revista logo depois de morrer, em uma matéria anunciada como “A tragédia da cocaína”. A Veja preferiu destacar o drama, em vez do talento da artista, do mesmo modo que faria em 2002, com a morte de Cassia Eller (foto acima). “Drogas – mais uma vítima” estampou na capa, logo abaixo da foto Cassia fazendo uma careta. Os exames toxicológicos, porém, divulgados dias depois, não encontraram drogas no corpo da cantora.
Roberto Civita e suas revistas gostavam de brincar de Deus, como o próprio empresário admitiu certa vez. Esse tipo de brincadeira foi um dos muitos componentes que determinaram a queda de credibilidade do grupo e de suas revistas. E também já colocou em risco os leitores.
Em 2011, a revista Veja propagandeava em sua capa um medicamento para emagrecimento. “Parece Milagre” era a chamada. Foram sete páginas em um formato que se tornou clássico na revista, em que reportagem, editorial e publicidade se confundem. Logo depois, o pior: a Agência Sanitária Brasileira (Anvisa) foi a público afirmar que o medicamento da reportagem não era indicado para emagrecimento, não tinha autorização para esse uso e oferecia risco à saúde da população que fizesse uso com esse fim.
A Editora Abril já teve de pagar por alguns desses erros. Em 2016, a Veja, seu então colunista Reinaldo Azevedo (foto acima) e uma rádio foram condenados a pagar R$ 100 mil de indenização por danos morais à cartunista Laerte. Azevedo criticou uma charge da cartunista e atacou a vida pessoal da profissional para fazê-lo. Laerte Coutinho, de 66 anos, considerada uma das principais artistas do Brasil, é transexual desde os 58 anos. Na decisão em primeira instância, o juiz destacou a depreciação à honra no texto da revista.
Outro modo da revista Veja pagar por seus erros foi o escrutínio de parte da população, durante as eleições de 2014. A sede da editora foi atacada na noite de 24 de outubro, com lixo sendo jogado na porta e pichações com frases como “Veja mente” e “Fora Veja”. Foi uma reação à edição que havia acabado de ganhar as ruas, em que a revista acusava o ex-presidente Lula e a então presidente e candidata Dilma Rousseff de terem conhecimento sobre a corrupção na Petrobras. Considerando a capa como uma propaganda eleitoral, Dilma Rousseff acusou a revista de fazer “terrorismo virtual” e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) proibiu o Grupo Abril de fazer anúncio da capa em qualquer meio de comunicação.