Carnaval: imposição da felicidade obrigatória
Época de excessos e liberdade sem qualquer moderação, com uma única exceção: é proibido não parecer feliz
Em seu livro “Felicidade – Ciência prática para uma vida feliz”, a médica psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva descreve bem a obrigatoriedade de ser feliz em determinadas épocas do ano:
“No rol de ilusões de felicidade, alguns eventos festivos merecem destaque, como o Natal, o Réveillon, o Carnaval e o Dia dos Namorados. Nessas datas, cria-se uma espécie de obrigação de se estar feliz, ou pelo menos, de transparecer felicidade. A grande pergunta que nos fazemos é: como estar sempre feliz nessas datas?”
As redes sociais amplificaram ainda mais a obrigatoriedade de viver feliz o tempo todo, pois, além das festas particulares terem se tornado públicas, no mundo virtual é possível criar uma “vida perfeita” o ano todo. É muito fácil postar apenas fragmentos muito bem pensados, produzidos e editados para vender a imagem de se estar feliz o tempo inteiro, assim como é mais fácil ainda fazer as pessoas acreditarem que isso é possível.
Segundo a psiquiatra, essa felicidade compulsória é ainda mais intensa no Carnaval, pois é uma época de vale-tudo, onde as únicas proibições são “ficar sozinho, triste ou sereno”. A autora completa: “Seja onde, quando e como for, deve-se ser feliz a todo custo. Caso não seja possível, ao menos transparece-se essa aura nas fotos, que também de forma compulsória, são postadas nas redes sociais.”
Como ir a um bom restaurante sem postar fotos e vídeos dos pratos, dos amigos à mesa e da decoração estilosa do local? Sem isso, a “felicidade” de fazer uma refeição parece não estar completa. O mesmo serve para viagens, aniversários e até para quando se recebe uma encomenda, afinal, que graça tem uma compra sem um “unboxing” (gravação da abertura da embalagem) com todos os adjetivos exagerados que fazem as outras pessoas quererem um igualzinho?
Silva destaca a força que move essa busca incessante: “Essa ditadura da felicidade não passa de uma ilusão muito bem montada para que se consuma mais e mais produtos, objetos e experiências de lazer ou turismo. Tudo isso com o intuito de fazer com que as engrenagens econômicas de uma sociedade consumista se mantenham sempre aquecidas e em pleno funcionamento.”
Essa afirmação se confirma quando recordes de consumo vêm sido batidos a cada ano, mesmo com toda crise financeira que se instalou no mundo inteiro nos últimos anos. Aqui no Brasil, por exemplo, a venda de cerveja cresceu 8% em 2022, de acordo com o Euromonitor International e o Sindicado Nacional da Indústria de Cerveja (Sindicerv). Foram consumidos mais de 15 bilhões de litros, o que equivale a mais de oito mil piscinas olímpicas cheias.
Se esses números surpreendem, as cifras que eles representam no bolso de poucos bilionários neste país deixariam qualquer um de queixo caído. Enquanto isso, às vésperas do Carnaval, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou constitucional a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e do passaporte de pessoas inadimplentes, sem qualquer menção a obrigar o Estado a fornecer programas de educação financeira para que as pessoas aprendam a lidar com seu dinheiro.
Mas enquanto as pessoas estiverem preocupadas em perseguir o impossível, fingindo serem felizes o tempo todo, não terão tempo para fazer o possível para alcançar uma vida mais digna e tranquila. Definitivamente, a estratégia do pão e circo – ou da cerveja e do vale-tudo – ainda funciona. E muito.