Como mover cidades inteiras de lugar após enchentes no RS

Medida é analisada pelo governo do Estado como solução para regiões onde cidades foram completamente destruídas pelas cheias

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As enchentes que varreram o Rio Grande do Sul já deixaram mais de meio milhão de gaúchos fora de suas casas. Entre desalojados e desabrigados, são 618 mil pessoas que sofreram com as chuvas que, há quase um mês, vem deixando estragos por onde passa. Eles se somam aos mais de 2 milhões de gaúchos que foram afetados de alguma forma pela fúria das águas, que invadiu cidades e devastou municípios inteiros. Ante esse problema, urge a necessidade de se pensar no pós: onde e, principalmente, como, essas centenas de pessoas irão retornar para suas vidas?

Diante disso, o poder público vem apresentando uma série de medidas, de cidades provisórias ao melhoramento dos sistemas de proteção contra cheias. No entanto, há municípios onde o rio insiste em tornar morada permanente. Finalmente ciente, o governo gaúcho apresentou uma ideia que, apesar de difícil de visualizar, talvez seja a única saída para prover um retorno em segurança: mudar cidades inteiras de lugar.

A medida não foi aprofundada pelo Piratini – que sequer citou os municípios, na ânsia de não gerar um alarde maior – mas já vem sendo encarada por pesquisadores como uma solução necessária para lidar com a nova realidade que se impõem, onde a intensidade dos eventos climáticos tende a crescer. Cidades como Roca Sales e Muçum, que enfrentaram três enchentes, uma pior do que a outra, no período de um ano, são a prova de que recomeçar do zero, de novo, já não parece uma solução plausível. No entanto, esse tipo de procedimento é complexo, caro e, por vezes, perigoso.

O deslocamento de municípios inteiros, por mais que pequenos, não é uma solução imediata. Apesar disso, “com os recursos de Brasília”, como classificou o Eber Pires Marzulo, professor titular da Faculdade de Arquitetura da UFRGS e do PROPUR, pode ser feita em médio prazo – a depender das vontades políticas e da disposição de caixa.

“Seria estabelecer um padrão de excepcionalidade histórica”, classifica. Soma-se a isso o fato de que, para ser realmente bem sucedido, esse tipo de procedimento requer atenção redobrada às mudanças climáticas e um forte processo participativo.

Em casos como Muçum, exemplifica o professor, a cidade, que já tem mais de 60 anos, possui suas próprias comunidades e laços de vizinhança. Reestruturar todo esse sistema sem contar com os arranjos sociais já existentes e desconsiderando a opinião dos moradores que vivem e conhecem aquela terra é uma apostar no caminho errado.

“Processos participativos tendem a ser mais eficazes e eficientes. São mais eficazes porque eles ocorrem de modo mais rápido; e são mais eficientes porque funcionam melhor depois de pronto”, explicou o professor, ao salientar a necessidade da participação da sociedade para a disposição de serviços, como hospitais, além do fato que os moradores conhecem as entranhas da terra onde vivem e, consequentemente, os seus problemas.

Logo, quando desconsiderada essa visão, frases como “é óbvio que a gente sabe que ali é um lugar alaga; ou é óbvio que a gente sabe que ali em tal lugar tem problema de deslizamento”, como exemplifica o professor, seriam via de regra. Ele reforça: “a orientação dada a partir das comunidades é mais eficiente e funciona melhor do que se for uma ação tecnopolítica”.

Nesse sentido, Marzulo destaca exemplos a não serem seguidos, como o da cidade New Orleans, nos Estados Unidos, que teve de ser reconstruída após o Furação Katrina e agora sofre com a redução de mais 20% da sua população. Isso porque o processo de reestruturação não levou em consideração as diferentes classes sociais ali presentes. A consultoria responsável pelo replanejamento da cidade é a mesma que atuará em Porto Alegre, a empresa norte-americana Alvarez & Marsal.

Cidades provisórias

Aliás, a necessidade de compreensão dos arranjos sociais não se limita apenas no possível deslocamento de cidades inteiras, mas também nas alternativas pensadas a curto prazo, como a criação das cidades provisórias, medida já anunciada pelo governo do Estado, em especial quando falamos da Região Metropolitana.

“A população que sofreu mais diretamente (nessa região) são as camadas populares em que as relações são muito territorializadas; as famílias, os compadrios e apoios ocorrem muito dentro do território, são muito fundados em relações de vizinhança, se jogarmos essa relação com um outro grupo num espaço restrito isso historicamente dá problema. […] No caso contemporâneo brasileiro, ainda tem o agravante das comunidades terem incidência das facções produzidas pelo encarceramento em massa […] os conflitos (entre facções) já estão acontecendo nos alojamentos”, conta o professor.

Outro ponto que merece destaque, tanto na criação (ou deslocamento) de cidades, quanto na atualização e ajuste de sistemas contra cheias já existentes, é a força dos eventos climáticos que tendem, salienta Marzulo, a se intensificarem. Segundo o professor, as análises apresentadas pelos meteorologista indicam que as chuvas, por exemplo, devem vir com cada vez mais intensidade – logo, as cheias também tendem a ser mais severas.

Assim, quando se pensa no deslocamento de um município ou na modernização de um sistema de proteção é preciso, diferente do que se fazia antigamente, projetar visando futuros incidentes que podem – e provavelmente serão – cada vez mais severos. Apesar disso, é possível aprimorar métodos e erguer cidades resistentes o suficiente, desde que pensados tecnicamente para respeitar o meio ambiente e ocorram através de um processo democrático.

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Colaborador

Correio do Povo / Fotos: Nelson Almeida / Gustavo Ghisleni /AFP / CP / Patrique Lopes / MetSul / Mauro Schaefer/ Fabiano do Amaral