Diálogo contra o abuso sexual de crianças
No Brasil, a maioria das agressões sexuais é cometida por familiares, como tios, avôs, primos e pais. Tabu impede que responsáveis conversem com as crianças sobre o assunto. Saiba como combater o problema
A violência sexual contra crianças é mais comum do que muitos imaginam. No mundo, uma em cada cinco meninas e um em cada 13 meninos são vítimas de abuso sexual, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). E no Brasil não é diferente. Por aqui, as notificações sobre esse tipo de caso cresceram 83% entre 2011 e 2017, segundo o Ministério da Saúde. E o pior: a maioria dos abusos ocorreu dentro da casa da criança. Os principais agressores são os familiares, como tios, padrastros, primos e pais.
A estudante Flávia Santos, de 19 anos (foto a dir.), foi vítima de abuso sexual em sua casa entre os 11 e os 17 anos. O agressor era o pai dela. “No início, eu cheguei a contar para a minha mãe, mas ela não acreditou em mim, achou que era coisa da minha cabeça”, lembra. A jovem diz que a violência gerou muitos problemas. “Eu me automutilava e me sentia culpada pelos abusos. Tive crise de ansiedade e cheguei a pensar em tirar minha vida.”
Em 2015, Flávia explica que encontrou apoio em duas vizinhas, embora não tenha revelado o problema a elas. “Elas me convidaram para ir à Universal e comecei a participar. Um dia, uma pessoa me deu um exemplar da Folha Universal. Vi uma reportagem sobre abuso sexual e o contato do grupo Raabe. Decidi procurar ajuda”, conta. O Raabe é um grupo da Universal que oferece apoio a mulheres que desejam superar traumas.
Em um sábado de 2016, quando seu pai estava prestes a cometer outro abuso, Flávia ligou para a polícia. O agressor foi preso em flagrante e condenado a 20 anos de prisão. “O Raabe me ajudou a ter estrutura e a recuperar minha autoestima. Eu não sofro mais com o que aconteceu nem guardo mágoas”, conclui.
Cenário brasileiro
A psicóloga e psicoterapeuta Tanise de Siqueira afirma que dois fatores influenciam o grande número de casos de abuso sexual de crianças e jovens no Brasil: o tabu sobre o tema e a legislação. “Existe a questão do tabu, pois muitos pais ainda não sabem como abordar o tema com a criança. Além disso, desde 2010 nós temos a lei da alienação parental, que só existe no Brasil e é usada para proteger abusadores”, alerta.
Ensinar a criança
Segundo a especialista, a preparação contra o abuso sexual deve ocorrer ao longo de todas as fases do desenvolvimento infantil, de acordo com a capacidade de compreensão da criança. “Entre bebês e crianças de até 3 anos, a linguagem tem que ser muito concreta e objetiva, sempre nomeando as partes do corpo de modo correto, sem apelidos. A pessoa deve explicar ações como ‘a mamãe vai te dar banho, vai limpar, vai trocar a fralda’ para que a criança entenda os limites e que só é preciso tocá-la nessas condições. É muito importante demarcar a diferença entre cuidado e carinho e o que é abusivo”, ensina.
À medida que a criança cresce, Tanise diz que os pais devem estimular a autonomia dela, como fazer a própria higiene, sem deixar de lado a orientação. A psicóloga lembra que os responsáveis precisam ouvir os relatos da criança com atenção e confiar no que ela conta. “É importante ouvir e não demonstrar pavor, pânico ou ansiedade.” Adolescentes também precisam de atenção. “Eles estão muito envolvidos com a internet, então é importante fazer a supervisão, ter conversas francas e pontuar os riscos”, completa.
Mais casos
Adeneide Mata, de 37 anos, conta que sempre conversou sobre o tema com seu filho de 10 anos. Ela foi vítima de abuso sexual quando tinha 5 anos. “Minha mãe tinha ido trabalhar e me deixou com um tio. Ele disse que não ia me machucar. Eu não sabia o que ele tinha feito e tive medo de contar”, lembra. O abuso gerou traumas. “Eu fiquei com ódio do meu pai porque achei que aquilo não teria acontecido se ele não tivesse se separado da minha mãe. Cresci com muita revolta e não confiava em ninguém”, diz.
Adeneide só contou o caso para a mãe há alguns anos, quando já estava casada. “Estávamos vendo uma reportagem sobre isso e contei para ela. Descobri que ela também tinha sofrido abuso na infância”, detalha. Para superar as lembranças do passado, ela diz que procurou o grupo Raabe. “Eu venci o problema, antes nem conseguia falar sobre o assunto.”
Adeneide conversa com o filho desde que ele era bebê. “Eu explico que ninguém pode tocar, pôr a mão, pois o corpo é dele. Sempre o instruí a conversar comigo sobre qualquer assunto. Nós temos que vigiar sempre”, finaliza.
O Projeto Raabe auxilia mulheres que sofrem com algum tipo de trauma e não conseguem superar algum evento do passado, como abuso e maus-tratos, entre outros. Para mais informações, acesse aqui.
Como orientar crianças e jovens
Crie um ambiente de confiança e estimule o diálogo
Fale o nome das partes do corpo de forma correta, sem apelidos
Diga à criança que ninguém pode tocá-la e que ela deve lhe contar se isso acontecer
Deixe claro a diferença entre cuidado e abuso. Explique cada ação que você fizer com a criança, como dar banho ou limpar
Desconfie desses sinais
Vítimas de abuso podem apresentar sinais como isolamento, agressividade, queda no rendimento escolar, pesadelo e terror noturno, medo exagerado, ansiedade, comportamento sexualizado, problemas de aprendizagem, falta ou excesso de sono, entre outros. Algumas podem desenhar as situações de abuso
O que fazer em caso de suspeita de abuso?
Afaste a criança do possível agressor
Denuncie ao Conselho Tutelar e a uma delegacia de polícia. Se possível, procure um(a) advogado(a)
Busque acompanhamento médico e apoio psicológico
Fontes: Ministério da Saúde e Tanise de Siqueira