Mais de 4.800 menores sofreram abusos sexuais do clero católico em Portugal desde 1950
Comissão independente ouviu mais de 500 depoimentos e calcula que a rede de vítimas deve ser 'muito maior'
Ao menos 4.815 menores de idade sofreram abusos sexuais por parte de membros do clero católico em Portugal desde 1950, de acordo com uma comissão independente que apresentou suas conclusões nesta segunda-feira (13), depois de ouvir mais de 500 depoimentos.
“Os testemunhos nos permitem chegar a uma rede de vítimas muito maior, calculada em um número mínimo de 4.815 vítimas”, afirmou o coordenador da comissão de especialistas, o psiquiatra infantil Pedro Strecht, ao apresentar o relatório final, em Lisboa.
A investigação foi solicitada em 2021 pela Igreja de Portugal, um país de arraigada tradição católica.
Em outubro, uma equipe de seis especialistas, liderada por Strecht, anunciou que havia registrado 424 testemunhos legítimos de supostas vítimas, mas advertiu que o número total era “muito maior”.
Os fatos denunciados revelam “situações graves que persistiram durante décadas, que se tornam mais evidentes à medida que se recua no tempo e que, em alguns locais, adquiriram proporções verdadeiramente endêmicas”, concluiu a equipe em outubro, em um relatório preliminar.
A maioria dos casos denunciados já prescreveu, mas 25 depoimentos foram encaminhados ao Ministério Público, que abriu investigações.
Um dos 25 casos é o de Alexandra, o segundo nome de uma mulher de 43 anos que prefere permanecer no anonimato e que foi estuprada por um padre quando se preparava para a vida de freira aos 17 anos.
“É muito difícil falar sobre o tema em Portugal”, um país em que 80% da população se define como católica, explica Alexandra, que é mãe, formada em ciência da computação, e trabalha como ajudante de cozinha.
“Eu guardava este segredo havia muitos anos, mas sentia que era cada vez mais difícil administrar sozinha”, declarou à AFP em uma entrevista por telefone.
Ela chegou a denunciar o agressor às autoridades eclesiásticas, mas se sentiu “ignorada”.
Três anos depois, os especialistas da comissão independente se ofereceram para ouvir seu depoimento e proporcionar apoio psicológico.
Em abril do ano passado, o cardeal-patriarca de Lisboa e principal líder da Igreja Católica portuguesa, Manuel Clemente, se declarou disposto a “reconhecer os erros do passado” e a “pedir perdão” às vítimas.
“Que os bispos peçam perdão não significa nada para mim. Não sabemos se o que falam é sério”, comentou Alexandra, que se declarou “enojada” com a Igreja e seu acobertamento dos abusos sexuais.
O papa Francisco viajará para Portugal em agosto para a Jornada Mundial da Juventude, e existe a possibilidade de um encontro com algumas vítimas, informou recentemente o arcebispo auxiliar de Lisboa, Américo Aguiar.
Diante dos milhares de casos de abuso revelados em todo o mundo e das acusações de acobertamento, o pontífice prometeu em 2019 erradicar o o abuso sexual de menores por parte do clero dentro da Igreja.
Vários países publicaram nos últimos anos relatórios sobre casos de pedofilia na Igreja, incluindo França, Irlanda, Alemanha, Austrália e Holanda.
Os bispos portugueses devem se reunir no início de março para tirar conclusões do relatório e para “erradicar, na medida do possível, esse flagelo da vida da Igreja”, como afirmou em janeiro o secretário da Conferência Episcopal, padre Manuel Barbosa.
Alexandra vê o trabalho da comissão como um “bom início” para os que buscam “romper o muro” de silêncio que cercou o tema por tanto tempo.