Pedofilia: quando a doença vira crime

Entenda quais os traços comuns aos pedófilos e o que fazer para denunciar em caso de abuso

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Parecia mais uma ida comum de mãe, avó e filha ao supermercado. Mas, infelizmente, não foi. Enquanto as duas adultas olhavam atentamente os preços dos produtos de limpeza, um criminoso aproveitou para tocar nas partes íntimas da criança de 5 anos de idade. Desesperada, ela correu para o colo da mãe, que gritou pedindo ajuda.

Os seguranças conseguiram conter o homem, de 62 anos, e chamaram a polícia, que o prendeu em flagrante. Segundo entrevistas concedidas pela própria mãe, a pequena continua assustada e traumatizada com o ocorrido. O vídeo do ataque repercutiu nas redes sociais e tem causado uma grande mobilização entre os internautas.

E não foi só essa notícia envolvendo pedofilia que chamou a atenção nos últimos meses. No mês de setembro, um estudante de medicina, de 27 anos, foi preso por armazenar em seu computador pessoal mais de 12 mil imagens de pornografia infantil. O mais assustador é que ele é voluntário em ações com crianças. O suspeito foi liberado após pagar fiança e todo material apreendido está sendo analisado pelo Instituto Geral de Perícias (IGP).

Mas, afinal de contas, o que é pedofilia? Ela pode ser caracterizada como um crime? Quem é o pedófilo? O que fazer para impedir que isso aconteça? É possível superar as marcas? A Folha Universal conversou com especialistas para buscar respostas.

“Segundo a Organização Mundial da Saúde, a pedofilia é caracterizada como uma doença (CID – 10, Cap. V, F. 65-4), um transtorno de sexualidade que consiste na ‘preferência sexual por crianças, quer se trate de meninos, meninas ou de crianças de um ou de outro sexo’”, explica a psicóloga Alessandra Amorim.

A pedofilia é uma doença, o crime só ocorre quando o pedófilo a exterioriza, seja por meio de assédio, abuso ou exploração sexual. “Muitos pedófilos nunca chegam a dar vazão a seus desejos e buscam tratamento. Ser pedófilo não é crime porque nem todo pedófilo abusa de criança”, acrescenta o médico psiquiatra Davi Urias Vidigal.

Quem é o pedófilo?

Os especialistas indicam que os pedófilos são, normalmente, conhecidos da criança. “Avós, padrastos, pais, primos, tios, vizinhos, pessoas próximas, qualquer um deles pode ser um pedófilo. E a maioria que comete crimes são homens”, afirma a psicóloga Alessandra.

“Não vai doer nada. É apenas uma brincadeira. Amo você. Por isso, não conte nada a ninguém, senão você vai ver o que vai acontecer.. Fique quieta, você quer que eu vá preso e morra?”. Essas ameaças soam ainda hoje na mente da estudante Leyde Joana Nascimento Silva (foto ao lado), de 18 anos. A jovem foi vítima de crimes sexuais cometidos pelo ex-padrasto dos 8 aos 10 anos.

Já *Pedro Santos (ele não quis ter o nome revelado) (foto abaixo), de 30 anos, jornalista, ouviu intimidações parecidas do tio e do vizinho. “Ia brincar na casa dele e ele me levava para os fundos, onde ninguém via. Lembro da sensação de dor e dele exigindo que eu não contasse para ninguém. Outro abusador foi meu tio. Quando ia passar as férias na casa da minha vó ele esperava a noite para ir ao meu quarto e era sempre a mesma história: tirava a minha roupa, fazia o que queria comigo e depois me dizia que ninguém, jamais, poderia saber, se não ia ficar ‘ruim’ para mim”, se recorda.

O advogado Ariel de Castro Alves , especialista em Direitos da Criança e do Adolescente, alerta também que o pedófilo é alguém comum. Não existe um perfil específico. “Pode ser qualquer pessoa e de qualquer classe social. A pedofilia é um distúrbio psiquiátrico, de pessoas que procuraram satisfação sexual por meio de pornografia infantil ou pela realização efetiva de relações sexuais ou atos libidinosos com crianças”, observa.

E a forma de abordagem é geralmente a mesma: se dá por meio do carinho e da atenção. “Eles procuram exercer a função de substituto paternal para conseguir praticar sua perversão. Então, primeiro há uma busca de oportunidades para se aproximar da criança, depois ocorrem os subornos, a promessa de recompensa caso ela coopere com seus desejos e as ameaças se houver recusa”, revela a advogada Anderlyse Teles.

O segundo passo, segundo ela, são as carícias e os atos libidinosos que podem culminar ou não no ato sexual. “Por fim, resta o pedido de segredo para que a vítima não faça a denúncia. Costuma ser uma pessoa acima de qualquer suspeita aos olhos da sociedade”, observa.

Influência social

A pornografia infantil, muitas músicas nas quais se utiliza o termo “novinha”, novelas e entretenimento em geral sexualizam precocemente as crianças e pré-puberes. Eles não são a causa, mas podem servir de gatilho para que os pedófilos que não buscam ajuda sejam incentivados a colocar em prática o desejo escondido.

“De certa forma, a sexualização da infância explorada nesses produtos indica o valor que nossa sociedade atribui às crianças. Numa sociedade marcada por alto nível de permissividade, como a brasileira, as crianças estão altamente vulneráveis. Isso significa que a sociedade dá espaço à sexualização precoce das crianças em lugar de uma infância livre e segura”, explica o sociólogo Herbert Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP).

É possível proteger

Segundo Herbert, os adultos (não só os pais, mas o conjunto de pessoas em torno das crianças) são as principais autoridades que podem impedir, ou pelo menos tentar evitar, os casos de abuso sexual infantil. “Há duas maneiras de fazer isso: a primeira é por meio da supervisão. Os adultos precisam estar mais presentes para poder gerar confiança e sensação de segurança; a segunda é legitimar a voz das crianças. Se ela fizer algum tipo de queixa, sua fala deve ser levada a sério”, orienta.

Outro ponto importante a ser citado é que os pais ou responsáveis não deixem as crianças sozinhas. “O fato de conviver diretamente com a criança faz com que eles (os pedófilos) ganhem a confiança dos pais. Então, o assustador é que, na maioria dos casos, os pais o conhecem e até confiam o filho aos cuidados dele. Por isso, creio que a melhor forma de prevenção é se fazer presente na vida da criança e evitar deixá-la sozinha com outras pessoas até que tenha idade suficiente para se defender”, observa o psiquiatra Davi Vidigal.

“Nos Estados Unidos, o National Center for Victims of Crimes (Centro Nacional de Vítimas de Crimes) calcula que uma a cada 5 meninas e um a cada 20 meninos já tenham sofrido algum tipo de abuso sexual. Então, minha orientação para proteger as crianças é: desconfie sempre. Esse é o primeiro cuidado que a mãe, o pai ou cuidador da criança deve adotar. Se faz necessário entender que o pedófilo e abusador pode estar dentro de casa, no bairro, pode ser um parente, um professor. Então, evite deixá-los sozinhos e oriente-os sempre”, conclui Vidigal.

Essa dor tem cura?

“É preciso ressaltar que muitos reproduzem o que já viveram, ou seja, quando vamos analisar o histórico de vida do agressor, podemos perceber algum tipo de negligência sofrida por ele”, analisa a psicóloga Alessandra.

Os médicos psiquiatras e pesquisadores especializados apontam que é possível usar o controle da libido sexual como forma de tratamento e de prevenção de abuso sexual infantil. “Evidentemente, os casos devem ser analisados individualmente e tratados de maneira específica de acordo com cada patologia. Existem diversas formas de tratamento. É necessário olhar com atenção e atender as pessoas que nunca cometeram abuso sexual infantil, mas que possuem esse tipo de desejo latente. Infelizmente, o Brasil não fornece tratamentos, tanto por causa do estigma como por causa da maneira punitiva de lidar com os casos”, salienta o sociólogo Herbert Rodrigues.

Não é fácil vencer as marcas de um abuso praticado por um pedófilo como também é difícil superar essa doença, mas, segundo o bispo Sergio Côrrea, ambos podem ser curados. “Eu só vejo um remédio capaz de destruir tal problema, chama-se libertação. A fé aliada ao novo nascimento (que é a ação do Espírito Santo no interior da vítima) causa uma transformação total do ser. No momento que a vítima passa a conhecer as promessas de Deus contidas nas Escrituras Sagradas, ela descobre por exemplo que: ‘…se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo’. (2 Coríntios :17). É o próprio Senhor Jesus que diz: ‘Eis que faço novas todas as coisas’”, afirma.

Ele explica que o doente também pode se libertar, mas é indispensável, antes de tudo, reconhecer e buscar auxílio. “Jesus disse: ‘…Tudo é possível ao que crê’ (Marcos 9:23). Não só o pedófilo, mas todo e qualquer tipo de pecador pode abandonar definitivamente suas práticas erradas usando a fé”, completa.

Até há alguns anos, a jovem Leyde tinha complexos com sua aparência e era insegura. “Tudo melhorou quando minha tia me convidou para conhecer o Godllywood, que é um grupo da Universal que tem o objetivo de ajudar as mulheres. Lá tive auxílio emocional. Passei a ir às palestras da igreja também e, aos poucos, aprendi a me amar e perdoei o agressor por tudo o que fez comigo”, afirma.

Já o jornalista *Pedro ainda está em busca dessa libertação. “Quando criança eu tinha muitos pesadelos, também fiz xixi na cama até os sete anos. Mais tarde soube que essa pode ser uma característica de crianças que sofrem abuso. Evito qualquer contato com o meu tio, que hoje é casado. Eu tenho pavor de estar em ambientes em que só tem homens, essa é a marca mais forte que carrego”, desabafa.

Como denunciar

Os pedófilos que abusaram de Leyde e *Pedro estão soltos. “Na época contei para minha mãe, mas ela não acreditou ou preferiu pensar que tudo era coisa da minha cabeça. Hoje ela não está mais com ele”, diz a estudante. O jornalista diz que não quis contar a ninguém e evita falar do assunto. “Eu tinha um sentimento de culpa e era muito imaturo para entender que deveria denunciar. Na época não falei sobre isso e, já adulto, comentei raras vezes”, finaliza.

Infelizmente, existem muitas Leydes e Pedros que não conseguem expor o que passaram. Porém, é necessário denunciar, seja você a vítima ou quem presenciou um ato de pedofilia. “Como já dito, não existe o crime de pedofilia, porque trata-se de uma doença. No entanto, qualquer forma de maus-tratos, opressão e abusos (sexuais ou não) são punidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que as protege, bem como pelo Código Penal”, orienta a advogada Anderlyse.

O Disque 100 é um serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos 24 horas, que funciona todos os dias da semana. No Brasil, é um dos principais meios de denúncia dos crimes envolvendo crianças e jovens. A denúncia também pode ser feita nos conselhos tutelares, delegacias de polícia ou anonimamente por meio do site www.dpf.gov.br.

Manter o silêncio em torno destes crimes favorece o aumento dos casos e piora ainda mais as ações de prevenção e de punição dos abusadores. Denuncie.

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Colaborador

Por Ana Carolina Cury e Katherine Rivas / Fotos: Fotolia, Reprodução e Cedida / Arte: Edi Edson