Respeito é bom e todo mundo gosta
Essa frase precisa ser lembrada todos os dias e, mais do que isso, ser vivida na prática para preservar a manutenção de direitos já adquiridos
A maioria dos brasileiros não acompanha o que acontece no Congresso e na política em geral. Mas verdade seja dita: quando acontece alguma confusão, ela ganha mais repercussão do que as pautas debatidas lá. Por exemplo, há algumas semanas a prestação de contas e a apresentação de programas e projetos que a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves (PT), fazia em uma comissão na Câmara dos Deputados ganharam outro destaque.
Enquanto Bohn Gass (PT-RS) falava, Erika Hilton (PSOL-SP) disse à colega Julia Zanatta (PL-SC): “você não tem espelho, você é ridícula, você é feia, você é ultrapassada. Vai hidratar esse cabelo. Vai se cuidar”. Pessoas ao redor riram das ofensas.
A cena não foi vista por quem acompanhava o trabalho da comissão on-line, todavia o acontecimento foi gravado e repercutiu nas redes sociais, incluindo a fala de Nikolas Ferreira (PL-MG), que rebateu Erika e disse: “pelo menos ela é ela”.
O caso foi parar no Ministério Público Federal (MPF) e muitos afirmaram que a declaração de Ferreira foi transfóbica, mas há também quem aponte que a de Erika foi misógina, uma vez que ela atacou Julia com ofensas em relação à aparência com a intenção de fazê-la se calar.
Em entrevista ao UOL, Julia afirmou que, de fato, se calou, pois não poderia falar o que pensa sobre o episódio sob risco de ser “processada, censurada e julgada”.
Erika abriu processo contra Ferreira por transfobia, crime que penaliza quem age com “aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém” e cobra R$ 5 milhões de indenização por danos morais coletivos, dinheiro que, se ganhar, destinará a causas em favor da população LGBTQIA+.
Na internet, Ferreira ironizou o processo e ressaltou que Julia foi atacada naquela ocasião. Seus apoiadores disseram que a atitude de Erika contraria a Lei 14.192, que previne, reprime e combate a violência política contra a mulher e está em vigor desde 2021.
O caso será julgado pelo MPF, mas o fato é que, apesar da lei citada, as mulheres ainda sofrem violência de gênero na política e, muitas vezes, são forçadas a se calar e reprimidas. Isso é alarmante em um país onde o Atlas da Violência 2024 aponta que o número de mulheres assassinadas segue aumentando: em 2022 foram 3.806 vítimas. Isso sem contar o crescente número de ameaças, estupros e outros tipos de violência. Somente entre 2012 e 2022, mais de 48 mil mulheres foram assassinadas.
Ao mesmo tempo, segundo dados da organização Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais registraram 131 pessoas trans e travestis mortas no Brasil em 2022 – sem contar a violência moral e física que essas pessoas sofrem.
Nas lutas das mulheres biológicas e das pessoas transexuais por seus direitos, incluindo segurança e liberdade, há pontos de encontro e de conflito.
Dissemelhanças
A discussão em relação aos direitos das mulheres biológicas e das transexuais é delicada, principalmente porque está presente em todas as esferas da sociedade. A linha tênue que existe nesse debate reaparece no uso de banheiros públicos, em questões de saúde pública, em concursos de beleza e até em competições esportivas. Por exemplo: em breve teremos os Jogos Olímpicos de Paris 2024 e, antes mesmo de as competições começarem, manchetes já estampam essa discussão. Isso porque as Diretrizes de Representação Retrato Igualitário, Justo e Inclusivo no Esporte de 2021- 2024, elaborado pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), permite a participação de atletas trans nas competições de alto nível, mas aponta que o sexo “é atribuído no nascimento e refere-se às características biológicas que definem uma pessoa como feminino, masculino ou intersexual (Organização Mundial da Saúde)”.
A participação dos esportistas está sujeita ao cumprimento das regras de órgãos regulamentadores de cada categoria. Recentemente, Lia Thomas (que até 2020 se identificava como Will Thomas), trans que compete nos desportos aquáticos, teve seu recurso negado pela Corte Arbitral do Esporte (CAS) para participar das Olímpiadas ao lado de mulheres biológicas, já que sua transição ocorreu após a puberdade e isso é contra uma das regras estipuladas pela World Aquatics.
Precisamos recordar que, quando as mulheres começaram a lutar por seus direitos no século 18, a ideia não era ocupar o espaço dos homens, mas construir um espaço semelhante para elas. Voltando aos Jogos Olímpicos, inicialmente, a competição era somente entre homens. As mulheres começaram a competir em 1900 e só houve equidade de gênero nas Olímpiadas de Tóquio 2021, com homens e mulheres vestindo a camisa de suas nações, porém com homens competindo com e contra homens e mulheres competindo com e contra mulheres – biologicamente falando.
E isso tem razão de ser, conforme comprova estudo publicado na National Center for Biotechnology Information pela bióloga Alison Heather. A especialista avaliou o desempenho de homens e mulheres nas Olímpiadas do Rio 2016, além do histórico do tratamento de estrogênio usado em trans para reduzir o nível de testosterona para se adequarem à faixa feminina. A conclusão é que “o conceito de justiça é a justificativa para dividir a maioria dos esportes em categorias masculinas e femininas. Sem essa segregação, as mulheres teriam poucas chances de vencer. Os recordes mundiais mostram que homens têm consistentemente melhor desempenho nos esportes” e, ainda, que “a antiga fisiologia masculina das atletas trans proporciona a elas uma vantagem fisiológica sobre a atleta biologicamente feminina” (tradução livre).
Assunto ainda complexo
Diante das diferenças fisiológicas e biológicas, até mesmo a área da saúde está em posição delicada. No ano passado, na França, um ginecologista foi acusado de transfobia após se recusar a atender uma mulher transexual. Ele alegou que não tem competências para atender aquela pessoa e que há serviços especializados que devem ser procurados nesses casos. E, de fato, o profissional especializado em ginecologia é especialista no aparelho reprodutivo feminino, o que aquela mulher trans não possui.
No Brasil, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Saúde visa a prevenção de “novos casos de câncer de próstata entre gays, homens bissexuais, travestis e transexuais e ampliar o acesso ao tratamento” e, em geral, o profissional da saúde que cuida dessa área é o urologista, que está capacitado a atender tanto homens quanto mulheres. Vale lembrar, porém, que toda e qualquer pessoa necessita de um acompanhamento multidisciplinar para cuidar de sua saúde.
Respeito
Todos merecem ser respeitados. Todos, sem exceção. Todas as pessoas merecem ter seus direitos, deveres e espaços resguardados. Mulheres cromossomo XX lutam há muito tempo por tudo o já foi conquistado em todas as esferas da sociedade e merecem seguir ampliando esse espaço – inclusive o de se expressar livremente e sem medo e o que já foi arduamente conquistado não pode ser diminuído por nenhuma razão. Por mais que haja um grupo de mulheres trans querendo, precisando e tendo o direito de ser ouvido, as mulheres biológicas não podem ser caladas ou reprimidas em hipótese nenhuma – isso seria um violento retrocesso. Como aprendemos quando crianças, nosso direito acaba quando o do outro começa. Por isso, é indispensável pensar em políticas públicas específicas para cada grupo da sociedade – afinal, a Constituição Federal determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. É essencial que a sociedade garanta que todos tenham espaço e que ninguém retalhe o direito alheio.
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